Crônica

21:15

Certa vez ocorreu-me a ideia de chamar Patrícia para sair. Não seria tão diferente de nossos trajetos rotineiros na volta para casa. Embora não propositais - afinal éramos vizinhos tanto em residência quanto em trabalho - nunca conversamos de fato, com exceção de algumas poucas palavras de cumprimento. Eu apenas me resignava a acompanhá-la e ela á mim e, mesmo minhas negações eram incapazes de encobrir a nua verdade de que eu tomava isto como um preparo, quase que necessário para, finalmente, declarar-lhe minhas intenções.
Foi assim então com certo receio que bati-lhe à porta naquela sexta-feira, minutos depois de termos chegado do trabalho. Não sei ao certo o motivo de não tê-la chamado enquanto caminhávamos, despreocupadamente, sobre as calçadas tão esburacadas de nosso bairro. Só sei que não me vieram palavras à boca. Na verdade, foi como se eu houvesse desaprendido a falar. Eu a olhei de soslaio e pude reparar como sorria, a cabeça rente ao céu, como a de um pássaro, os cabelos loiros lhe caindo sobre os ombros. Há muito havia percebido que Patrícia era bela. Sim, de fato, era muito bela. Nunca, no entanto, reparei que era bela em todos os ângulos nos quais me dispusesse a olhá-la. Nem mesmo o nariz pequeno havia de lhe atrapalhar a beleza.
Assim, absorto em pensamentos, não fui capaz de perceber que ela também me olhava e suas as bochechas coloriram-se quase que instantaneamente quando constatei-me do fato. Nada pude fazer a respeito disso - graças a fala que acabara de descobrir perdida - exceto acenar-lhe um longo adeus quando passávamos em frente à minha casa; correr para a porta e fechá-la com um estrondo desejando, posteriormente, não ter nascido.
Talvez por isso ela tenha arregalado os olhos, mesmo que por alguns poucos segundos, ao me ver ali, na fachada de sua casa, quase sendo engolido pela paisagem que me rodeava. Eu, estático. Ela, pensativa. Não nos cumprimentamos. Não nos falamos. Ficamos apenas ali, presos um no olhar do outro. E nos engolimos mutuamente, famintos do amor que ainda não tínhamos compartilhado, que ainda não tínhamos nem cogitado existir. Nunca havíamos sequer conversado, nem sobre o dia, nem sobre o trabalho, nem sobre nós mesmos. Não nos conhecíamos e, mesmo assim, o amor estava ali, em algum lugar entre os espaços que nos preenchiam - e separavam - e as calçadas esburacadas pelas quais caminhávamos, paralelos um ao outro. Assim, quando finalmente tomei fôlego e convidei-a para sair e ela, envergonhadamente, respondeu que sim, sim ela adoraria sair comigo, eu senti como se pudesse beijar o asfalto sobre o qual os pés de Patrícia andaram, ao lado dos meus, conversando ritmicamente como nossas bocas jamais fizeram. 
Meses depois pedi Patrícia em casamento e, a mesma cena de quando decidi convidá-la para sair, repetiu-se. A resposta fora a mesma: sim, sim, eu adoraria me casar com você. Aí então começaram os preparos do casamento. Nunca mais havíamos voltado juntos do trabalho, no entanto. Ela aceitara outro emprego. Agora, conversávamos mais e avidamente, sobre o dia, o trabalho, o tempo, o sabor do bolo, a cor da decoração, o cardápio do buffet, o destino da lua de mel e, por fim, a conversa que eu mais evitava: sobre os filhos que poderíamos ter e não tínhamos.
Comecei, então, a sentir falta dos silêncios desconfortáveis, do meu olhar que pousava no ombro de Patrícia para, então, levantar voo novamente. Sentia falta de quando apenas os nossos pés precisavam se entender meio ao asfalto quente e das inúmeras conversas nossas que tão alegremente imaginei. Sentia falta, principalmente, das bochechas que nunca mais coraram. Até que um dia, enquanto voltava do trabalho pela mesma rua na qual eu-não-conheci-Patrícia, cheguei a uma severa conclusão:

A Patrícia, com quem eu nunca havia conversado, era muito mais interessante.

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